Quando o coelho da Páscoa era uma lebre
O uso de ovos, em rituais de renascimento das estações, é conhecido desde os tempos mais antigos; mais curiosa é a forma como aparecem misturados com coelhinhos na tradição das ofertas pascais.
Os coelhos sempre foram pouco católicos, dada aquela mania luxuriosa de passarem o tempo. Por isso, quando aparecem agarrados às amêndoas e aos ovinhos da Páscoa, é só consumismo pagão mal adaptado.
Isto porque os verdadeiros coelhos da Páscoa eram lebres, cuja simbologia tendia para extremos. Tanto ultrapassam a luxúria coelhorum (na Idade Média dizia-se que até emprenhavam grávidas) como apareciam como “santas criaturas”.
Os bestiários medievais incluem as lebres entre os seres tímidos e tão tementes a Deus que preferem entregar a sorte à Providência do que confiar nos seus empreendimentos. Como também existia a lenda que algumas lebres podiam conceber sem necessitarem do macho, chegaram a ser associadas à Virgem Maria.Quanto ao hábito da oferta das guloseimas leporinas nesta quadra, deriva dos ritos gregos da Primavera, associados à renovação cíclica da fertilidade.
Durante os festins campestres acreditava-se que todo o homem que comesse uma boa lebre adquiria o invejado vigor lúbrico do animal. Ao longo de nove dias e nove noites consecutivas, podia prová-las- às lebres e não só-,banqueteando-se em façanhas idênticas com as da sua espécie.Esta lebre “comida” transitou para o catolicismo no sentido casto de oferenda, tornando-se símbolo de uma Eucaristia consagrada.

Aqui ficam dois exemplos da simbologia cristã das lebres, em igrejas da velha Albion:

Uma ilustração dos Salmos(104:18)- «As altas colinas são refúgio para os ouriços-cacheiros e os rochedos para as lebres».
cadeiral de Bishop Wilton, E. R. Yorks
David e Golias com duas lebres a espreitarem por cima do chefe dos filisteus- David, associado a Cristo; Golias ao Demónio. David salvou o exércio israelita- “Cristo, tal como os rochedos é o nosso refúgio”- cadeiral de Bishop Wilton, E. R. Yorks

 

 

 

cadeiral de Reepham, Norfolk,
Uma leporina suplicante, sentada num separador dorsal das cadeiras de coro de Reepham (Norfolk).

 

 

 

 

 

 

 

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Clark, Willen B. & McMunn, Meradith T., Bests & birds of the Middle Ages, Philadelphia, 1989- cfr: Tisdall, M. W., God’s Beasts, Charlesfort Press, Plymouth, 1998

Redenções com ovos
Mais curioso foi o modo como o Cristianismo os assimilou a representações da Paixão de Cristo ou da sua antecipação.
Os ovos míticos que aglutinavam esse sentido de morte e regeneração futura eram os ovos de avestruz. Pelo tamanho e forma polida e perfeita da casca, os ovos destas alimárias deram azo a fantasiosos relatos medievais.

No Bestiário Divino,o bispo Guilherme da Normandia explica que a avestruz põe os ovos no mês de Junho, quando aparece no céu a estrela Virgílio, enterrando-os na areia do deserto, onde ficam esquecidos e os filhotes saem dos ovos, apenas graças ao calor do Sol. Na versão do Physiologus, os avestruzes eram incubados graças ao poder do olhar da mãe.

Estes portentos associados aos ovos de avestruzes, servem também de continuação para o seu uso nos ritos religiosos, sendo comum pendurá-los nas igrejas, em particular durante a Semana Santa.

Piero dela Francesca, Pala Brera

É num sentido paralelo, entre o místico e o alquímico que Piero Della Francesca incluiu o mítico ovo, no preciso ponto de fuga da Madona Pala Brera, num duplo sentido do amor celeste da Virgem/nova Vénus e da redenção pré-anunciada de Cristo.

Durante a Idade Média durante o período da Semana Santa, torna-se mesmo costume a venda de ovos de avestruzes, à porta das igrejas, juntamente com cocos e velas, que depois se ofereciam no altar do Redentor.

Cristo de Burgos

Um exemplo que ainda permanece encontra-se na Igreja de San Agustín de Burgos. A popular e realista imagem de Cristo crucificado (coberto de pele e barbas, ao natural, como era do gosto popular) inclui aos pés uma coroa com ovos de avestruz.

Existem variantes da representação onde os ovos se misturam com a caveira, no sentido da redenção e renascimento de um Novo Adão. A simbologia do sangue redentor é aproximada por outra lenda que dizia que a avestruz, para ajudar os filhos a nascerem, provocava a quebra da casca, derramando o seu sangue sobre eles.
Entre estes dois pólos de vida e morte coincidem com os cânticos do Símbolo de Nicea (estabelecido a partir do Concílio, no ano de 325): “reconheço um baptismo para o perdão dos pecados e espero a ressurreição dos mortos”. Mas a história dos ovos da Páscoa não fica por aqui.

Na sua variante pagã dos cultos de Astarte, o mais fabuloso ovo caiu do céu no rio Eugfrates e desde aí não foi batido pelo Guiness; de dentro dele saiu a deusa Vénus- na versão europeia da Isis babilónica. Por todos os motivos, como é bom de calcular, nenhuma avestruz foi responsável por este.

Ver também aqui
John Landseer, Sabean Researches, London, 1823.
J. Charboneau-Lassay, El Bestiario de Cristo. El simbolismo animal en la Antiguidad y Edad Media, Jose J. De Olañera, editor, Barcelona, 1997.

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