«Ao contrário das personagens dos romances, vinculadas a um único gesto, as figuras dos mitos passam por muitas vidas e muitas mortes. Mas em cada uma dessas vidas e dessas mortes estão compreendidas, e repercutem-se, todas as outras. Só quando nos apercebemos da existência de uma coerência inesperada entre incompatíveis é qu podemos dizer que transpomos o limiar do mito. Por ordem de Diónisos, testemunha imóvel, Ariadna, abandonada em Naxos, foi trespassada por uma seta de Artemísia; ou enforcou-se em Naxos, depois de ter sido abandonada por Teseu; ou, grávida de Teseu, naufragou em Chipre e aí morreu durante o parto; ou foi encontrada em Naxos por Diónisos, e desde então acompanhou-o nas suas empresas, como amante e soldado: quando Diónisos atacou Perseu na terra de Argos, Ariadna acompanhava-o, armada, nas fileiras das loucas Bacantes, até Perseu ver diante de si outro rosto mortífero de Medusa e Ariadna ser petrificada. Ficou uma pedra no tempo. Nenhuma mulher, nenhuma deusa teve tantas mortes como Ariadna. Aquela pedra na acrópole, aquela constelação no céu, aquela enforcada, aquela morta de parto, aquela donzela com o seio trespassado por uma seta, tudo isso é Ariadna.(…)»
Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia (1988), Edições Cotovia, Lisboa, 1990.
Falar da Arte Ocidental e da sua História é também seguir o fio de Ariadne, revisitando mitos, seguindo-lhes as transformações, as mutações, empurradas pelos ventos dos gostos, das modas, dos entrosamentos estético-literários das rupturas e dos retornos do que à superfície comunica sempre com esse fundo a que se chama Civilização