Muito antes de Dali se ter lembrado de transformar uma estátua de Vénus de Milo num arquivo de pompons de ardores e classificações estéticas, já Hogarth, em pleno século XVIII, soube fazer a sátira mais atrevida que só não teve maior projecção por ter ficado por marginalia dentro de quadro e gravuras a acompanhá-las.
Já lá iremos, mas vale a pena recordar que o tema da inspiração amorosa da Vénus grega já vinha a ser cada vez mais pretexto para se irem pintando mulheres nuas às quais se insistia em dar o nome da deusa, ainda que as poses tendessem a ser cada vez mais terrenas.
Ticiano pintou uma Vénus ,acabada de acordar e com a criada ao fundo, à procura da roupa para toilette.
Uns séculos mais tarde, Manet põe os pontos nos “is” e trata-a pelo nome- a mademoiselle Olympia, conhecida no meio, por esses favores amorosos. E ela, toda galante, ergue o corpinho, enquanto balança o chinelo- não há aqui oferta passiva, ela é que desafia o voyeur.
Pelo meio houve muitas variantes a caminharem cada vez mais para o prazer erótico – as Vénus de Ticiano espraiavam-se ao ar livre, distraindo o olhar dos músicos e inspirando-lhes as melodias, onde os dedos não chegavam.
A linha serpentinada, do ideal da Beleza, transforma a Vénus ao espelho, de Velázquez num torso de curvas e desejos revistos ao espelho, demasiado carnais para nos recordarem as cópias da estátuas clássicas e a maja “guapa” madrilena de Goya já deixou de ser um modelo nu, para se tornar numa bela rapariga despida.
Falta o caminho inverso- aquele em que são as estátuas dos modelos clássicos- os eternos nus académicos, mirados por coleccionadores, copiados até à exaustão como mais um adereço de jardim, são satirizados como acréscimo ao arrivismo estético da época.
Essas, para serem subvertidas como as mulheres bem reais que as imitavam, precisavam de se parecer de desmontar a própria noção de belo académico.
Este sempre foi o intuito mais subtil de Hogarth- satirizar os próprios conceitos e aprisionamentos de imitação francesa da arte inglesa da época, tanto quanto as modas excêntricas que de uma nobreza em que a afectação do donnaire não escondia o novo-riquismo do aburguesamento.
Numa das gravuras que acompanhava o seu tratado da Linha da Beleza (de que já falámos aqui ) Hogarth leva a ironia ao ponto de desmontar o próprio conceito de cópia da pedra que nunca poderia ter a vivacidade do natural.
A sua Vénus de Medici, arrumada naquela estância de coleccionador, com um falso Apolo tão “castrati” mais parece representar um falso pudor, sem se preocupar com a cabeleira um tanto desgrenhada para uma deusa.
Mas, antes desta Vénus de colecção, já Hogarth tinha levado muito mais longe a brincadeira.
Num quadro encomendado por Mary Edwards de Kensinghotn— cortesã rica mas com um marido que lhe derretia a fortuna e que possivelmente servirá de inspiração para a posterior série de Marriage-à-la-Mode—, Taste in Hight Life(1742),Hogarth tem liberdade plena da patrocinadora, para satirizar sem piedade o caricato das toilettes e decoração de interiores da alta sociedade em que a própria se movia.
No meio daquele chazinho tão queer quanto os frufrus esvoaçantes das senhoras e a imitação do macaquito de salão e do pagenzinho negro, glosa-se a sátira no quadro de maior dimensões, mesmo por trás do que quase fica à mostra e nós não vemos, na lady da casa.
Num jardim povoado de cupidos, uma Vénus de Médicis posa em cima de um pedestal com a inscrição- Mode 1742. Empoleirada em tacões altos e semi-vestida com o corpete da época- toda ela se espraia numa crinolina que lhe cobre as vergonhas da frente, enquanto destapa o traseiro, virado para quem a observe no quadro.
A sátira vai ser repetida em gravura, neste caso com a variante das anáguas irem murchando e os sapatos ficando rasos, à medida que o novo classicismo estético também avançava.
Estas crinolinas foram propícias às caricaturas mais divertidas na época, sendo memoráveis as de George Cruikshank, Mas a irreverência sem paralelos de Hogarth daria pelo nome de kitsch na modernidade. Fez da mítica estátua e modelo de academia- uma boneca de vestir e despir- de crinolina tapando o que não se via e deixando à mostra, como se nem se desse conta, o que sempre se sonhara ver em qualquer estátua- a mulher que lá está dentro.
O efeito da anágua insuflada ainda é replicado no resto do quadro.
Enquanto uns cupidos atiçam o fogo a uma anágua (muito antes do Duchamp se lembrar do LHOOQ da Gioconda)e outros arrulham debaixo da armação, uma dama ao fundo da balaustrada, acompanhada de um anjinho, deixa cair uns panejamentos a imitar as musas clássicas. Mas o toucado realista não engana; e muito menos o seio carnudo que mostra, completando ao natural, o que a de Médicis, armada em estátua de pedestal, julga que encobre.
Consultar: – Ronald Paulson, Hogarth, volume II(Hight Art and Low; 1732-1750), Cambridge, The Lutterworth Press, 1992
– The Works of William Hogarth: In a Series of Engravings by John Trusler
O diabo está nos detalhes
É claro que na Vénus de crinolina, a picadela mais satírica tinha de estar ainda mais escondida.
Num pequeno quadro lateral, paralelo a outro com classificação de exotismos, sobrou piada seca para “queer” de estimação:
Monsieur Desnoyer- dançarino da moda, aparece vestido com tutus de bailarina, rodeado de borboletas e libelinhas- à delicada composição, chama-lhe Hogarth- “Insectos”.