Suméria

“Morte do Dragão. O primeiro S. Jorge”

A morte do dragão é um tema que mereceu a preferência dos mitógrafos da maior parte dos povos e idades. Na Grécia, principalmente, onde abundavam as narrativas consagradas aos deuses e aos heróis, dificilmente havia personagem fabuloso que não tivesse morto o seu dragão.
Talvez Héracles e Perseu sejam os mais célebres dos gregos matadores de monstros. Com o advento do cristianismo a heróica façanha foi transferida para os santos, como o testemunham a história de São Jorge e o Dragão e todas as que se lhe assemelham. Só os nomes das personagens e as circunstâncias variam de lugar para lugar, de narrativa para narrativa. Mas qual é a fonte original destes episódios? Como a morte do dragão era o tema familiar da mitologia suméria do terceiro milénio a. C., é razoável supor que muitas linhas de textura das narrativas gregas e do princípio do cristianismo provêm de fontes sumérias.
Conhecemos actualmente, pelo menos, três versões do tema da morte do dragão, tal como era corrente há mais de trinta e cinco séculos na Suméria. Em duas destas versões os heróis são deuses—o deus da água, Enki, o que mais directamente corresponde ao grego Posídon, e Ninurta, o deus encarregado do vento do sul. A terceira versão apresenta um mortal matador de dragões—o herói Gilgamesh—, que pode bem ser o original «São Jorge».
No mito em que figura Enki é o monstro Kur que parece ser o vilão da história. O combate teve lugar, segundo parece, pouco tempo após a separação do Céu e da Terra e(se as linhas fragmentárias são correctamente interpretadas) a má acção praticada por Kur consistiu em raptar uma deusa do Céu, o que nos faz lembrar a história grega do rapto de Perséfone. Infelizmente só dispomos de uma dúzia de linhas lacónicas para por elas reconstituir a narrativa, dado que nenhuma placa em que o mito tenha sido pormenorizadamente inscrito foi até hoje exumada.
O episódio é referido num breve trecho do prólogo do conto épico Gilgamesh Enkidu e os Infernos. Q passo respectivo refere-se imediatamente às linhas relativas à «criação». O seu conteúdo é o seguinte:
Depois de o Céu e da Terra terem sido separados, Ano deus do Céu, levou consigo o Céu, enquanto Enlü, o deus do ar, levou a Terra. Foi então que a vil acção foi cometida. A deusa Ereshkigal foi provavelmente levada violentamente como presa do Kur não está determinado quem praticou a acção, mas não é improvável que tivesse sido o próprio Kur). Em consequência disso, Enki empreendeu de barco uma viagem ao Kur. O seu propósito não é esclarecido, mas parece provável que tenha querido vingar o rapto da deusa Ereshkigal. O Kur combate selvaticamente com toda a espécie de pedras e ataca o barco de Enki, pela frente e pela retaguarda, com as águas primordiais, que controlava. Neste ponto termina o breve passo do prólogo, dado que o autor de Gilgamesh, Enkidu e os Infernos não estava directamente interessado na história do dragão, mas sim ansioso por prosseguir com a narrativa de Gilgamesh. E ficamos sem conhecer o resultado da batalha. Mas é quase certo, contudo, que foi Enki o vencedor. E não é inverosímil que o mito fosse inventado com o propósito de explicar por que motivo, nos tempos históricos, Enki, como o Posídon grego, era concebido
como um deus do mar e porque o seu templo em Eridu era designado por Abzu, a palavra suméria que significava «mar».

S.N KRAMER,. A História Começa na Suméria. Lisboa, Europa-América,1963.

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Bibliografia:
1. KRAMER, S. N. Os Sumérios. 5.ed. Lisboa: Oficinas Gráficas de Livraria Bertrand, 1977.
2. KRAMER, S.N. A História Começa na Suméria. Lisboa: Europa-América,1963.
3. KRAMER, S. N. Mesopotâmia: berço da civilização. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1967.
4. LAMAS, Maria. Mitologia Geral; o mundo dos deuses e dos heróis.2.ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1973.
5. LÉVÊQUE, Pierre. As Primeiras Civilizações – Volume II: Mesopotâmia e hititas. Tradução de Antonio José Pinto Ribeiro. Rio de Janeiro: Edições 70, 1987.

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