Hoje bate-se palmas e toca-se música rock démodé nos ofícios católicos, mas as igrejas já conheceram muita coisa para além da oração recatada ou da missa em latim. Nas épocas mais antigas os templos eram utilizados para uma série de práticas sociais, desde os actos de julgamento no alpendre, aos contratos mercantis e outras actividades que hoje em dia nos podem espantar.
Serviam, por exemplo, para depósito de cereais e mercadorias e até para abrigo dos animais. Não será causa para admiração, uma vez que o cristianismo se introduziu lentamente nos campos e foi-se misturando com e as velhas práticas pagãs. A protecção que se pedia a Deus também dizia também respeito à subsistência da comunidade, as ordálias (bênção de de objectos e animais nas igrejas) eram comuns e só deixam de ser reconhecidas em 1215, com o IV Concílio de Latrão. Gregório de Tours (séc.V) deixou alguns relatos de desacatos originados por essas práticas. Os animais espantavam-se ao serem levados ao altar, de tal modo que o esperado coro celestial era abafado pelo ruído dos cascos, relinchares, mugidos e grunhidos misturados com os gritos das dúzias homens que os tentavam acorrentar(1).
Por cá, é próprio rei D. Duarte que se vê obrigado a proibir o costume de pernoitar nas igrejas, aquando das romarias e vigílias nocturnas que se faziam acompanhar de danças, jogatinas e outras festanças pouco castas.
As festas de loucos e carnavais são um dos melhores exemplos da persistência pagã a subverter a prática católica. Nesse período escatológico diziam-se missas às avessas; a liturgia decorria em torno de uma garrafa de vinho ou em honra de um burro e as sátiras não poupavam ninguém – S. José era o mais sacrificado – “o último a saber”, muitas vezes representado por um homem travestido a dar a papa a um gato no lugar do menino Jesus.
Era a época do riso pascal e, como ainda hoje se diz – não é para se levar a mal – . Várias personalidades religiosas redigiram textos jocosos a este propósito. O próprio Papa Leão XIII defendia que a Igreja também devia cuidar dos aspectos humanos e estes são revelados com a maior franqueza e honestidade. Apoiava-se, para tal, numa passagem do Livro de Jehovah “Deus não precisa para nada da vossa hipocrisia”. Os próprios religiosos redigiam e divulgavam estas facécias.
Johannes Pauli, monge alemão, recolheu uma série de farsas carnavalescas destinadas aos próprios monges. A colectânea foi publicada em 1522 com o título “Riso e Seriedade” (Schmpof und Ernst). No seu prefácio o autor explica que o livro se destina “aos religiosos reclusos nos mosteiros para que tenham com que se rir e distrair, de modo a descansar o espírito, pois não podem viver da ascese”(2).
O clero estava mais próximo do povo mas também era muito ignorante. Muitos jovens ingressavam nas ordens sacras praticamente analfabetos e destituídos qualquer formação espiritual. Em 1467 o arcebispo de Lisboa depara com confessores que nem a fórmula da absolvição sabiam, o que não admira pois também era comum não se confessarem, e obriga-os a escrevê-la e a decora-la. No entanto, parece que esta fraquezas eram bem suportadas pelas entidades superiores, contando que materialmente não fossem esquecidos… A um clérigo que tinha por hábito frequentar as tabernas e aparecer em estado impróprio na igreja, o arcebispo castiga-o com a uma pequena multa de 50 reais com a particularidade desta se repetir sempre que reincidisse no pecado etílico…
O canto do Ofício Divino era outro problema; deveria ser de tal modo enfadonho que muitos frades jovens e conversos nem compareciam à salmodia das horas canónicas. Quando apareciam, “palravam” faziam “jeitos de esgares” uns para os outros; não estavam quietos, trocavam palavrões e até chegavam a andar à pancada. Certo é que estes desmandos não eram exclusivos do baixo clero, pois também havia sacerdotes que nem se falavam e cujas brigas ficaram memoráveis(3).
S.José a dar a papa ao menino Jesus–Niccolò Frangipani-c.1555- dentro da tradição “Hoe schilder, hoe wilder”, da pintura dissoluta do barroco dos Países Baixos
macaco e monge a lerem livro coral – misericórdia do cadeiral de Zamora
frades-odre no coro, misericórdia de cadeiral de Yuste
burro a ler no facistol – misericórdia do cadeiral da Sé do Funchal (c.1514/15).
Ego sum abbas cucaniensis
et consilium meum est cum bibulis,
et in secta Decii voluntas mea est,
et qui mane me quesierit in taberna,
post vesperam nudus egredietur,
et sic denudatus veste clamabit:
Wafna, wafna!
Eu sou o abade de Cocania
e o meu conselho é com os bêbedos,
e minha filiação a seita de Décio,
e quem me vier procurar na taberna de manhã
sairá nu à noite,
e assim despido de suas roupas clamará:
Wafna, wafna!
Carmina Burana (canções de monges e eruditos errantes- os goliardos (1230)
A rivalidade entre professos acentua-se com a introdução das ordens mendicantes que vêm retirar grande parte dos privilégios às restantes ordens. Nos cadeirais estas questiúnculas eram satirizadas recorrendo-se a variantes da personagem do raposo do romance popular. Do alto do púlpito, vestido de frade, o matreiro animal faz uso dos dotes da oratória para encantar a audiência de galináceos e os papar no final do sermão. A brincadeira era glosada na literatura popular, fazendo-se trocadilhos com a passagem da Epístola de S. Paulo aos Filipenses (1,8): “Testis est mihi Deus, quam cupium vos visceribus meis”- “Deus é testemunha de quanto vos quero nas minhas entranhas” –, em lugar de “no mais profundo do meu ser”. O refrão lá dizia que “frayle franciscano, el papo abierto,y el saco cerrado” e “o abade donde cana dali janta”.
Gil Vicente no Clérigo da Beira também recorda a ladainha do frade mundano enquanto caminha com o filho em busca de boa caça: “Lauda Dominum die coelis/ Pois os coelhos são seus”.(4)
raposo a pregar, ladeado por acólitos franciscanos- abadia de St Mary em Beverley
raposo a pregar às galinhas – cadeiral da Sé do Funchal.
O comportamento sexual dos religiosos provocava alguma dores de cabeça à entidades superiores mas também não seria nada que não conhecessem. No relato de visitação à igreja de S. Miguel de Torres Vedras (1462) ordena-se aos os vigários, capelães, priores que estejam a par de clérigos publicamente barregueiros que os proíbam de dizer missa, No caso do amancebado serem os próprios vigários e piores que assim vivam publicamente, ficavam encarregados os raçoeiros de não os consentirem, bem como de os obrigar a pagar multa ao aljube eclesiástico.
O tema fazia as delícias da literatura satírica. Arcipreste de Talavera, referia no El Corbacho, publicado em 1483 os “frades e seculares que não respeitavam as mulheres e eram conhecidos pelos seus feitos de “tocar gaita”. Por cá, Gil Vicente, na sequência da Nave dos Loucos de Sebastian Brant, faz aparecer o frade amantizado no auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, vestido como um fidalgo e de mão dada com a moça cantando prazenteiro:
Assédio na confissão – cadeiral de Zamora
FRADE- Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesu Cristo,
que eu nom posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!…
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!
(E continua a desembainhar
o espanto por o esperarem as chamas do Inferno)
Como? Por ser namorado
e folgar com üa mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!…
Monge a dar nalgadas em rapaz– cadeiral de Leon
cena homosexual entre frades, cadeiral de Oviedo
freira-javarda a assediar homem- Bosh, Jardim das Delícias
frade em cena homossexual ou herética- o beijo do diabo- cadeiral de Saint Pierre et Saint Claude, França.
Notas:
1- Giordano Oronzo, Religiosidad Popular en la Alta Edad Media, versão espanhola de Pilar Garcia Monton y Valentín Garcia Yebra, Madrid, Editorial Gredos, 1983).
2- Mickail Bakhtine, L’0euvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen ge et sous ka Renaissance, Paris, Gallimard, 1970
3- Consultar: Isaías da Rosa Pereira, “Visitações da Igreja de S. Miguel de Torres Vedras” (1462-1524), Lusitana Sacra, 2ª série, 7, 1995
4-Ver: Pinciano, Hernãdo Nunez, Refranes o proverbios en romance que nuevamente coligio y glosyo el comendador Herãnado Nunez Pinciano, Valladolid, 1602