{Eis que chegam os dias do castigo. Eis que chegam os dias da justiça. Israel exclama: O profeta está louco, o homem inspirado delira. À enormidade de teu pecado junta-se a de tua perseguição.
Oseias, 9,7}
Dizia Cassiano , nas Instituições destinadas à vida cenobita, que era preciso serem loucos para serem sábios.
Do apelo à obediência humilde, em oposição ao orgulho egoísta, a história dos loucos por Deus passa pelos monges vagabundos do Oriente e, mais tarde, pelos santos selvagens das florestas da Europa.
A apotaxia – renúncia aos bens terrenos- consistia numa via criativa de ascetismo extremo, em que o riso simulava a loucura.
Oscilando entre a solidão do deserto e a mistura na vida citadina, estes santos loucos subvertiam toda a ordem social, troçavam e eram troçados, deixando-se humilhar publicamente ao mesmo tempo que praticavam milagres.
A demanda mística levava-os a abandonar os cenóbios para se misturarem com o povo, vivendo como os mais insanos pecadores.
Teófilo de Adana ( c.† 538- na actual Turquia)
João de Éfeso (c. 507-586) conta o caso de Teófilo e Maria, um casal oriundo de famílias importantes de Antióquia, que se convertem ao celibato para juntos levarem uma vida errante- ele fazendo de jogral e ela de prostituta. Vestindo-se da forma mais escandalosa, é nesse estado que vão viver na cidade de Amida.
A santa loucura de “jograis de Cristo” impele-os a entrarem nas igrejas e troçarem dos padres e dos crentes, até serem corridos e espancados por toda a gente.
João de Éfeso conta que um dia os seguiu e deu com eles no cume das muralhas, virados para Oriente, orando de braços abertos até caírem no chão, repetindo estas preces em êxtase- só Deus era testemunha desta santidade escondida do mundo.
Simão o louco leva ao paroxismo este sentido dos loucos ridentes por Cristo.
O teatro de rua do santo louco Simeão
Simeão abandonou o cenóbio, juntamente com um companheiro, para vaguear como os esqueletos do deserto, numa vida selvagem afastada do contacto humano, fortalecendo o corpo e o espírito à custa das maiores privações.
Aí passou vinte e nove anos, até que considerou que esta vida solitária não trazia benefício a mais ninguém e decidiu procurar o exílio no colectivo – na cidade, onde salvaria a próximo com o mesmo apagamento com que a areia lhe apagara os traços.
“Parto no poder de Cristo, troçarei do mundo”, foi como se justificou ao amigo, fazendo intento de salvar o próximo, burlando o reconhecimento mundano
Depois de passar pela Cidade Santa, dirgiu-se a Emessa, onde viveu até morrer, apenas reconhecido por um religioso da cidade. Aí vai levar a irrisão dos costumes até ao paroxismo de os resgatar.
O seu aparecimento na cidade ficou memorável.
Arrastando um cão morto que encontrou numa lixeira, por uma corda atada à cinta, entrou neste preparo em Emessa, provocando a troça das crianças que corriam atrás dele, batendo-lhe e chamando-lhe louco.
Como autêntico histrião provocador, no dia seguinte, compra umas nozes, entra na igreja e interrompe os ofícios com o barulho irritante que fazia a parti-las. Perante e a admoestação geral, insiste nos disparates, apagando as velas com os dedos. Quando se viu perseguido pelos fiéis que correram atrás dele para o expulsar, sobe ao púlpito e desata a atirar o resto das nozes à cabeça das mulheres.
Só a muito custo o arrancaram do lugar santo. Cá fora, não se deu por vencido- dirigiu-se a umas bancas de pasteleiros e deitou com a doçaria toda para o chão.
À custa de tamanho pandemónio, levou tamanha pancada dos populares que ferido de morte, ainda teve espírito para se auto-ironizar- “Pobre Simão, assim nas mãos destes, não duras nem uma semana”.
Mas durou e montou um autêntico teatro de nonsense na cidade. Às suas excentricidades ninguém ficava indiferente- tanto fazendo com que se rissem e o aplaudissem, como se revoltassem pelas ignomínias que simulava – naquela terra deixou de haver lugar para a anomia.
Falava como um ímpio; dizia palavrões; simulava heresias; quando não andava nu, destapava o rabo aos transeuntes e passava-lhes rasteiras; cagava à vista de toda a gente- comportava-se como um autêntico louco, alternado nesta conduta os disparates mais insólitos com os milagres de que pudicamente não aceitava reconhecimento.
O relato das fantasiosas provocações, deixado por Leôncio de Nápoles é delicioso. Saliente-se estas.
Ao segundo dia, sangrando ainda da fúria popular, foi achado por uns vendedores que, desconhecendo a sua loucura, decidem empregar o monge na venda de frutos secos de tenda para a rua.
Simeão, mal se viu com a banca por conta, pôs-se a comer tudo e a oferecer os figos secos e tudo o resto a quem passava. De tal modo, que passados uns dias não restava nada para os comerciantes venderem.
Mais uma vez foi espancado e até lhe arrancaram os pelos das barbas.
Depois, parece que ganhou o gosto de alternar os disparates com milagres, mas cuidando sempre que passassem despercebidos.
A um taberneiro, a quem havia dado uma lição de inutilidade da ganância, depois deste lhe agradecer, decidiu contrapor o mérito com excesso de zelo pela sua esposa, fingindo que a havia violado.
Consta que estes monges, à conta do estado de ataraxia adquirido no deserto, deixavam de possuir desejo sexual. No entanto, Simeão simulava-o de forma desconcertante, chegando ao ponto de passar temporadas no prostíbulo e de ser acusado de ter engravidado uma empregadita doméstica.
A ataraxia sexual conseguida nos longos anos de deserto, era usada de forma tão escandalosa quanto o intento oposto que visava.
Uma vez, o bispo seu amigo, decidiu animá-lo após o estado lastimoso em que ficara no jejum pascal. Convidou-o para se ir banhar com ele aos banhos públicos. Muito contente com a ideia, Simeão, tratou logo de tirar as vestes e as atar à cabeça, como se fora um turbante.
Perante o olhar atónito do religioso que o mandava cobrir-se, ele retorquiu que não via onde estava o mal por apenas fazer uma coisa antes da outra.
Quando passaram pelos banhos das mulheres, Simeão nem esperou mais- foi logo para ali que se dirigiu. O religioso bem lhe gritava que o recinto para os homens era mais além, mas Simeão apenas lhe retorquiu: “Vai-te imbecil! Ali há água quente e água fria; aqui, água quente e água fria. Não há nada de mais nem ali, nem aqui”.
E atirou-se de mergulho para junto das mulheres.
No fim satisfez a curiosidade licenciosa do amigo, que queria saber como é que ele se tinha sentido em tal companhia feminina em pelota.
E o santo louco lá lhe explicou em que consistia o erotismo às avessas- para ele era igual a estarem mulheres ou uns madeiros dentro de água- há muito que se desincorporara.
Também admoestava os habitantes com técnicas de deliciosa ironia e até os milagres que fazia se misturavam as atitudes menos cristãs que lhe passava pela cabeça imitar.
Ainda que fizesse os seus jejuns às escondidas (e com grande severidade em período pascal) gostava de fingir o contrário para escandalizar toda a gente.
Aos domingos, comprava salsichas em grande quantidade, enrolava-as à volta do pescoço- como se fosse uma estola e começava a comê-las pela manhã, molhando-as em mostarda que segurava na outra mão.
Estava um dia neste banquete, acompanhado da garotada, quando se lhe juntou um homem que sofria de glaucoma e que aproveitou para petiscar das salsichas do monge.
Este, não faz mais nada, vira-se para ele e unta-lhe os olhos com um pedaço da mostarda que tinha na mão. Perante os gritos do desgraçado, retorquiu: vai lavar os olhos com alho e vinagre- imbecil (tratava toda a gente por imbecil).
Depois de muito sofrer e de tudo ter tentado para retomar a visão, o desesperado camponês acabou por seguir a indicação médica do louco. O que arde cura- e não é que ficou a ver de forma cristalina, como nunca sonhara.
Simeão ao ver que o campónio agradecia a Deus o milagre, foi ao seu encontro e, com a mesma displicência com que lhe havia atirado com o molho das salsichas, disse-lhe- «olha, curaste-te imbecil? Então agora deixa de roubar cabras».
O Estilita era este
O Simeão, santo Louco de Emessa, não é o Simão Estilita, mais conhecido na versão de Buñuel ou na dos Monty Python.
E, segunda conta Juan Mosco (El Prado), estilitas até existiram vários. Dois deles tinham coluna a distância de cerca de dez kms; um em Cilícia; o herético na aldeia de Casidora.
O que seguia uma seita de Severo (e estava há mais tempo nem cima da coluna), tentava converter o ortodoxo, mas este simulou que ia na conversa e acabou por fazer tal milagre com uma hóstia que o rival perdeu clientela.
Também consta que houve estilita rebelde, em Hierápolis. Este seguia a heresia de Severo e dos acéfalos (as raças fantásticas, continuavam activas por aquelas bandas).
O rebelde deixou de o ser, depois de um fervoroso católico ter prometido que o trazia ao bom caminho.
Para tal, aceitou o desafio do rebelde que lhe propôs fazerem os dois uma fogueira e saltarem lá para dentro. Aquele que saísse ileso era o que professava a verdadeira fé.
O patriarca, não só aceitou o desafio, como mandou tratou de acender a fogueira aos pés da coluna, gritando para o herético descer e vir enfiar-se nas brasas.
Aí o estilita, por muito treino de alturas que tivesse, assustou-se com a segurança térrea do patriarca. Este, não fez mais nada. Atirou com o pálio para dentro da fogueira, orou e conseguiu que retirá-lo sem uma chamuscadela.
O estilita rebelde converteu-se imediatamente à Igreja Apostólica.
Não sabemos é se continuou lá por cima.
- Imagem: Cenas da vida de Simão o estilita, [fol. 2.v do código do mosteiro de Esfigmenu, monte Atos (séc. XI?), in, Historias bizantinas de locura y santidad (op. cit).
Quando ele era ela
Algo me diz que esta imagem se reporta a mais um caso de “santa barbadinha” assediada pelo demo, à custa da rara beleza que possuía.
Os frescos de uma pequena capela dedicada a Santa Maria dos Campos, à saída de Londiona, em Novara, na região do Piemonte, incluem uma misteriosa imagem feminina que tem gerado diversas interpretações. Entre uma representação de S. Bernardino de Assis e de Santo Antão, a jovem mulher, de cabelos repuxados em forma de meia lua, túnica caída e seios à mostra, amamenta uma criança.
Foi colocada na net, num curioso álbum de fotografias e têm-lhe sido alvitradas pertinentes interpretações. Desde uma variação da Virgem como Via Lactea, numa apropriação do mito do Juno e Hércules, até outras hipóteses mais pagãs, associadas aos cultos da fertilidade ou mesmo como uma variação das tentações do deserto a que Santo Antão foi sujeito.
Pois bem, o facto da intrigante lactante se encontrar ao lado de santo patrono dos eremitas – ele próprio nascido no Egipto e sujeito às tentações do demo no deserto, e o mesmo tipo de túnica bizantina que a figura feminina usa, tudo indica que se trata de uma santa dos cultos ortodoxos- neste caso Teodora de Alexandria, que viveu no século V da era de Cristo, festejada na Igreja Ortodoxa no dia 11 de Setembro.
Na Lenda Dourada de Jacques de Voragine, conta-se a vida desta dama de alta estirpe que acaba por ter uma vida de provações e tentações carnais. Primeiro foi o demónio que a levou ao adultério. Para penar esta traição esponsal, corta o cabelo, veste as calças do marido e foge entra num ermo convento masculino como um belo Theodorus. Até ao dia em que uma moça se apaixona por ela e assedia no campo, a tal ponto que a bela Teodora teve de a repudiar.
A desdenhosa moça não perdoou a rejeição e vingou-se, seduzindo fisicamente outro viajante. Este, por acaso, era bem homem e o resultado foi nascer bebé deste ressabiamento.
Teodoro foi acusada de ser o pai e expulsa do convento. Levou com ela a criança a quem alimentou com os seus seios. E deve ser esta a passagem que se descreve na iconografia, no meio dos santos eremitas.
Durante sete anos Teodora penou no ermo com o filho, atazanada por mil tentações demoníacas, até que voltar a ser admitida no convento, juntamente com o filho. À hora da morte deu-se o milagre- o abade teve uma visão acerca da injustiça para com o falso monge Teodoro, descobrindo-se depois de morto que afinal era uma mulher. Avisado o marido de Teodora acaba por morrer junto com ela. O filho destas falsas traições e castidades punitiva acabou por se tornar abado do convento, a partir do qual o culto de Santa Teodora se difundiu.
A particularidade de aparecer nos belos frescos da modesta capela do Piemonte, pode também ligar-se à Virgem dos Campos- da virgem lactante- a cujo culto foi erigida a própria capela italiana – Santa Maria dos Campos- numa assimilação da freira Teodora das instigações da carne, que dos ermos lugares do Oriente fez frutificar o corpo em prol do espírito.
Acrescento:
Esta hipótese de se tratar de Teodora de Alexandria é isso mesmo, apenas uma hipótese, tendo em conta a informação que o santo que está a seu lado será Santo Antão. Mas pode tratar-se de S. Roque (tudo depende do tipo de bastão que tem na mão), faltando-nos as imagens para o confirmar.
Consultar:
John Saward, Perfect Fools, Folly for Christ sake, Paris, Éditions du Seuil, 1980;
Para o texto do relato da vida de Simeão, contado com invejável vivacidade loquaz por Leôncio de Neápolis (Chipre), ver: in Historias bizantinas de loucura y santidad, Ediciones Siruela, 1999