A moda de gravuras com mistérios e escrita hieroglífica associada aos rebus desenvolveu-se nas cortes renascentistas italianas, acabando por derivar em charadas populares que antigamente os jornais publicavam juntamente com as palavras cruzadas.
A escassez de divulgação de imagens e restrita capacidade de interpretação simbólica torna-a uma prática eruditíssima, própria para ilustrar emblemas e empresas de príncipes e intelectuais, ou para uso hermético na tradição simbólica da alquimia.

Ao longo do século XV e daí em diante, a hieroglífica institui-se como uma linguagem perfeita, capaz de conciliar os sentidos com a razão e iniciar o espírito nas mais altas esferas do conhecimento abstracto.

O neoplatónico Marsilio Ficino é dos primeiros a constatar esta importância e refere-o nos comentários acerca da Ennéacles (V.I.VIII,6): “O conhecimento das coisas por Deus não é compatível com o alfabeto e seus caracteres, nem compatível com um discurso acerca das coisas. O conhecimento de Deus e das coisas consiste numa visão simples e estável da sua forma”.Quanto à sua complexa genealogia, pode dizer-se, de modo muito abraviado, que se baseou em fontes paralelas, sendo a mais importante a divulgação do velho e mítico tratado de Horapollo No seguimento da queda de Constantinopla e consequente imigração de intelectuais de cultura grega e hebraica, chegou à corte florentina,uma cópia grega da Hieroglyphica de Horapollo, comprada em 1419 por um sacerdote florentino, de nome Christophoro de Buondelmonti e, a partir daí, divulgaram-se edições por todo o lado.
Acreditando no poder de uma escrita simbólica, de Mantegna, a Durer, vários foram os artistas e inteletuais que se dedicaram à mania de decifrar hieróglifos, criando eles próprios diversas composições em forma de enigmas.

O gosto teve o apogeu erudito numa das mais curiosas novelas de amor e arquitectura de que há memória- a fantástica Hypnerotomachia Poliphili de Francisco de Colonna, publicada em Veneza no ano de 1499.
A história tem como subtítulo “Luta do amor em sonhos de Polifílio, onde se ensina que todo o humano é apenas sonho e além disso recorda habilmente muitas coisas digníssimas” e está cifrada- unindo as iniciais de todos os capítulos, forma-se uma frase em latim que significa- “O irmão Francisco Columna amou muito Polias”. O herói do romance- Polifilio,amante da beleza, representa-a como uma forma de conhecimento e virtude.
A trama consiste na senda do autor pelo amor de Polia, fazendo-lhe despertar o prazer físico, até descobrir que afinal a amada tinha morrido e tudo não passara de um sonho.
O mais curioso da obra é que a demanda processa-se entre sonhos de arquitecturas fabulosas, jardins e ruínas com estátuas em que os hieróglifos vão tendo o papel de explicar o sentido metafórico da realização do corpo arquitectónico e do erótico-amoroso.

Ao longo da obra as metamorfoses fantásticas vão dando lugar à progressão do amor mundi e da libido aedificandi renascentista, ao encontro de um “corpo humanista”, num nítido exemplo de fantasia de sociedade requintada em que o desejo de realização superava já a velha contemplação medieva.



As gravuras que acompanham o romance vão ter uma série de aplicações em decorações de arquitecturas e textos, tendo sido detectadas copias na sala capitular do convento de São Paulo de Parma, no claustro de Santa Justina em Pádua e no da Universidade de Salamanca, incluindo-se também em divisas várias.

Interessemo-nos agora por duas representações alusivas a elefantes que nela se incluem.
O primeiro, quase indecifrável, faz parte de um rebuscado rebus que será mais tarde aproveitado para a decoração da referida Universidade de Salamanca.
Os estranhíssimos elefantes que aos pares ladeiam o caduceu formam uma charada alegórica de cariz político acerca dos efeitos da concórdia e da discórdia no corpo social.

Baseiam-se num texto clássico de Salustio(Ygurtha, X), onde se diz:- “Concórdia parvae res crescunt, discórdia maximae dilabuntur”- “A concórdia faz com que as coisas pequenas se unam e cresçam, a discórdia separa-as e destrói-as, por muito grandes que sejam”.
Para dar forma à máxima, o autor serviu-se da fábula de Mercúrio quando a caminho da Arcádia encontra duas serpentes em luta e lhes aponta a vara, fazendo-as cessar a contenda e enlaçarem-se à volta do instrumento pacificador.

No desenho de Colonna e medalhão de Salamanca, os elementos opostos são reforçados por duas selhas antagónicas- de um lado uma com água dentro, do outro com fogo.
No par inferior os elefantes (que significam o poder e a razão) estão virados de costas porque se odeiam e os corpos gigantescos estão a metamorfosear-se em formigas. No par superior, tal como as serpentes da fábula, a concórdia faz-se sentir e são as pequenas formigas que se transformam em gigantescos elefantes.

O segundo exemplo não se trata de um rebus mas de um elefante que sustenta no dorso um obelisco decorado com hieróglifos. A iconografia faz recordar os velhos elefantes medievos com a casa às costas, misturados com a escultura de glorificação das praças públicas, como foi moda no final do Império Romano.
Seguindo-lhe o curso, podemos chegar ao famoso obelisco da praça Minerva da autoria de Bernini ( il pulcino della Minerva)- cuja história pode ser lida aqui .

Coube ao famoso arquitecto-escultor utilizar um velho obelisco já existente e com ele fazer uma composição dedicada ao poder da sapiência associado à deusa Minerva.
Depois de diversos projectos para a base, Bernini acaba por recorrer à simbologia da força da razão, encarnada pelo elefante e copia o modelo de mais uma passagem da demanda de Polifilio.

Mas estes memoráveis elefantes que sustentam o Poder não terminam aqui. Em 1758 o aquitecto Charles Ribart projectou uma gigantesca estátua em forma de elefante, dedicada à glorificação de Luís XV, para ser colocada no local onde desembocavam os Campos Elíseos e onde mais tarde veio a ser construído o Arco de Triunfo.

O extravagante e colossal monumento, planeado em plena guerra da França com a Prússia, desenvolvia-se como uma autêntica torre de saber e poder heróico. No dorso deveria carregar as relíquias dos adversários e no topo culminaria com a figura do próprio rei. O interior dividia-se em diversos pisos com acesso por escadarias, culminando num nicho dentro da cabeça, onde deveria ficar o trono para o monarca. Possuía uma grande sala de jantar, albergava junto às orelhas um espaço para uma orquestra e deveria ser munido de um complexo sistema hidráulico para alimentar as fontes que fariam jorrar água pela tromba do gigantesco paquiderme.

Napoleão parece que não lhe achou grande piada e mandandou derrubar o que já havia sido iniciado, para que fosse construído no seu lugar o desengraçado arco que ainda por lá está.
Foi pena. Tivesse ele visões arquitectónicas tão vastas como megalomania imperial e teríamos hoje em Paris a Hipnerotomachia “elefantíaca” em pendent com a pirâmide do Louvre.

Imagens:
1- gravura de Hipnerotomachia e medalhões de claustro da Universidade de Salamanca
2- detalhe
3- obelisco de Bernini, Praça Minerva, Roma
4- desenhos do projecto
5- gravura de Hipnerotomachia Poliphili
6- projecto de elefante de Charles Ribart

Bibliografia:
Franco BORSI, Architecture et Utopie, Paris, 1997
Juan F. ESTEBÁN LORENTE, Tratado de iconografía, Edictiones Istmo, Madrid, 1998
P. PEDRAZA, (1983), “La introducción del jeroglífico renacentista: los enigmas de la Universidad de Salamanca”, en Cuadernos Hispanoamericanos, 394, Madrid, 1983, 1-35.
___ (1983), “Los jeroglíficos del patio de la Universidad de Salamanca y la Hypnerotomachia Poliphili” , in Traza y Baza, 8, Valencia, 1983, 36-57.
R. WItTTKOVER, Allegory and the Migration of Symbols, Thames and Hudson, United Kingdom, 1987.

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