Ludovico Sforza e Beatrice d’Este, Pala Sforzesca, Pinacoteca de Brera, Milão.c.1494
Não é só pela carteira que se conhece um senhor. Há quem afiance que a gravata para eles e os sapatos para elas são critérios mais válidos mas o certo é que na mesa se tiram as teimas. Parece que já o afirmavam os tratados “à Bobone” de alguns requintados cortesãos renascentistas e Leonardo da Vinci não tinha dúvidas. Por muito que se tenha esforçado na educação do gosto culinário dos seus Médicis, a verdade é que não aprenderam nada.
Bem pôde ele inventar uma série de guardanapos e variadíssimos modos de os dobrar. Na corte de Ludovico Soforza a moda não pegou. Como conta o pintor, o magnífico senhor de Milão “tem por costume atar coelhos com fitas às cadeiras dos seus comensais para que estes possam limpar as mãos as mãos engorduradas às costas do animal, costume que considero impróprio da época em que vivemos. E, quando depois da refeição, os animais são recolhidos e trazidos para a lavandaria, o mau-cheiro infiltra-se nos outros panos que são lavados conjuntamente com eles..“.
Leonardo não desiste. Perante a imundice das toalhas de mesa, avança com a ideia de guardanapos e dobrados de variadíssimos e artísticos modos. O problema foi o resultado… aqui fica o relato de Pietro Alemnanni, o embaixador Florentino em Milão:
«Ontem à noite apresentou à mesa a sua solução para o problema, consistindo num pano individual colocado diante de cada conviva, o qual deveria ser sujo no lugar da toalha de mesa. Mas, para grande perturbação de Mestre Leonardo, ninguém achou modo de o utilizar ou soube o que fazer com ele. Alguns foram ao ponto de se sentar em cima. Outros assoaram-se nele. Outros, ainda, serviram-se dele para o atirarem, em tom de brincadeira, a outros comensais. Mas houve também quem o utilizasse para envolver a vitualha e a ocultar na bolsa ou no bolso. E depois do repasto terminado, encontrando-se a toalha tão suja como de costume, Mestre Leonardo confiou-me a sua angústia de que o invento nunca chegasse a ter aceitação. Alem disso, nessa mesma semana, Mestre Leonardo sofreu novos reveses à mesa. Tinha imaginado um prato de salada para um certo prândio, pensando que a grande taça que a continha seria passada de mão em mão, cada um tomando para si um pequena quantidade. No centro viam-se ovos de codorniz, ovas de esturjão e cebolinhas de Mântua dispostas em cima e rodeadas de folhas de alface de Bolonha e de suculento aspecto. Mas quando a pessoa que servia à mesa colocou a taça diante do Convidado de Honra do Senhor Ludovico, Cardeal Albufiero de Ferrara, o dito Cardeal atafulhou no manjar os dedos de ambas as mãos e, como a maior rapidez, devorou todos os ovos, ovas e cebolinhas, servindo-se posteriormente das folhas de alface para limpar o rosto coberto de salpicos e devolvendo-as, enxovalhadas, à taça, que por disposição falha de siso de quem servia à mesa, acabaram por ser presenteadas à minha senhora d’Este. A aflição de Mestre Leonardo perante o ocorrido punha-o completamente fora de si e, na minha opinião, acho que a taça da salada não irá aparecer mais vezes à mesa».
Dizem agora as análises aos restos mortais que a causa de morte de alguns dos Médicis se deve a intoxicação alimentar e o caso pode ter sido para menos.
Uma vez, este esteta e amante da culinária, desenhou uma série de aríetes e escadas como instruções para uma guerra que o amo travava com o Papa e fe-las acompanhar de maquetas em maça-pão e massa de pasteleiro. Lourenzo de Médicis parece que não entendeu a refinada mensagem bélica e decidiu oferecê-la como bolos aos convidados durante uma ceia.
Pior sorte foi a dos Sforza quando o pintor aprontou um monumental repasto para a boda de Ludovico Sforza com Beatrice D’Este. Teve a ideia de efectuar a cerimónia dentro de um bolo de 70 metros como réplica do palácio, confeccionado no próprio pátio dos domínios do amo com polenta e massa coberta de passas e nozes que acabou atacada por uma invasão de pássaros e ratazanas de todo a cidade.
Mas, se à mesa as maneiras eram estas e a batalha da civilidade da culinária foi perdida pelo pintor, a verdade é que a cozinha onde fazia as experiências era um autêntico caos.
Atente-se nesta descrição de um embaixador florentino que visitou os aposentos no palácio dos Sforza:
«A cozinha do mestre Leonardo da Vinci é um manicómio. O senhor Ludovico Sforza contara-me que os esforços dos últimos meses tinham sido no sentido de economizar trabalho humano, mas, agora, em lugar dos vinte cozinheiros que as cozinhas costumavam ter, há umas duas centenas de pessoas afadigando-se, e nenhuma das que pude ver estava propriamente a cozinhar, mas antes ocupada com os grandes engenhos que enchem o chão e as paredes, nenhum dos quais parecendo funcionar de modo útil ou adaptado à finalidade par que fora criado. Numa das extremidades da cozinha encontrava-se uma grande roda hidráulica, que, posta em movimento por uma cascata que se despenhava sobre ela com fulgor, salpicava e encharcava com os seus esguichos todos os que passassem por baixo, transformando o chão num verdadeiro lago. Foles gigantescos, medindo cada um quatro metros de comprimento, estavam suspensos dos tectos, bufando e rugindo, destinados a afastar o fumo dos fogões; mas o que conseguiam fazer melhor era aumentar as chamas, com prejuízo para todos os que necessitavam de executar as suas tarefas junto do lume, e as chamas eram tão intensas que exigiam uma fila permanente de homens com baldes de água a tentar apagá-las, se bem que outras águas jorrassem em cima de todos, vindas de todos os cantos do tecto. E por toda esta área de cataclismo vagueavam cavalos e bois, alguns andando às voltas para fazer girar o engenho, cuja função não parecia ser outra senão andar meramente às voltas, enquanto outros arrastavam dispositivos para limpar o chão, desempenhando heroicamente as suas tarefas, e todavia seguidos por outro igualmente extenso exército de homens para limpar os excrementos dos cavalos. Também me foi dado ver a grande trituradora de vacas, avariada, com metade de um mamífero ainda preso na engrenagem e quatro homens a tentar removê-lo com auxílio de alavancas. Num outro sítio, ainda, estava o dispositivo de lenha de Mestre Leonardo da Vinci: despejava ininterruptamente a sua carga na cozinha, e nada o conseguia fazer parar. De sorte que, em vez de dois homens que costumavam trazer lenha para a cozinha, era agora necessário empregar dez para a de lá tirar. Verificámos, então, que os gritos que ouvíamos provinham dos infelizes que se queimavam, afogavam ou sufocavam, e das explosões de pólvora, substância que Mestre Leonardo da Vinci insistia em usar para acender os seus fogos de combustão lenta; e, como se isso já não fosse suficientemente ruidoso, juntava-se ainda a música dos tambores que continuavam a rufar, embora, ao que parece, os tocadores de órgãos-de-beiços se tivessem já afogado. Como descrevi, a cozinha de Mestre Leonardo da Vinci, parecia um manicómio, o que, parece-me, não agradou ao senhor Ludovico Sforza.”
Plataforma giratória de gramofone manual que acabou transformado em cortador de toucinho fumado, posto em funcionamento por um moço de cozinha que se sentava no banco à esquerda.
Com cozinhas desta natureza, receitas mirabolantes, inventos inverosímeis e jantares pantagruélicos, muito bom estômago precisavam de ter estes cortesãos.
Entre todos os delirantes apontamentos deste código, o mais avisado ainda é o conselho de um bom auxiliar para a digestão. Confessa o artista:
«Pergunto a mim mesmo se no intervalo dos pratos servidos à mesa do meu Senhor (sobretudo no caso de esses pratos não serem de primeira qualidade) em vez do aparecimento de acrobatas e anões, a exibição de alguma dançarinas licenciosas não seriam um melhor digestivo».
Shelag & Jonathan Routh, Notas de cozinha de Leonardo da Vinci, Ed. Arte Mágica, 2002, seg. Codex Romanoff, atribuído a Leonardo da Vinci.