Em 83, por encomenda de Moira Nelly, Paula Rego realiza, em dois meses a série Óperas para a exposição “Eight for Eighties”.

Pintadas a acrílico, em telas de grandes dimensões, de pincelada rápida e livre das mutilações das anteriores colagens, as óperas mostram-nos um mundo agitadíssimo de personagens entre o humano e o bestiário, em ritmos livres, de humor e crueldade, encenando a tragédia e recriando-a na migração de bicharocos e historietas de outras obras.

As figuras repartem-se em bandas de diferentes proporções, utilizando uma série de duplos, que coincidem com alguns dos duetos operáticos.
Em redor deles desenvolvem-se outros tantos duelos de tirania mútua entre bicharocos predadores e os que já nasceram para serem vítimas.
As bandas laterais, desenhadas na vertical, à semelhança de fotogramas de cinema, parecem ter o papel do coro da tragédia grega, anunciando os momentos fatídicos, ou as aberturas e andamentos musicais.

Nota-se o gosto infantil pela teatralidade imponente do espectáculo, que tanto seduziu a artista na adolescência.
Sentimos que espreita este mundo convencional do lado dos bastidores, usando a artificialidade da tragédia, cantada, para a subverter, em jogos zoomórficos.

Colocando as máscaras em pictogramas, que tanto lembram a cerâmica clássica- com os seus fundos ocres- como, no caos sem perspectiva, se aproximam do mundo das iluminuras medievais.

As máscaras ainda não tinham caído – a comédia humana desenrolava-se na tela numa parafernália de visões em rodopio, tendendo para o centro da apoteose final.

La Bohème, acrílico/papel, 240×203 com, n. s.n. dat.,col. da artista

Puccini compôs esta ópera em 1896, instituindo o estilo verista ,com uma multiplicidade de personagens, em tom coloquial que, apesar da curta duração, virá a ter grande influência na moderna ópera italiana e até em alguma contemporânea.
O tema baseia-se nas Cenas de Vida Boémia de Henri Murger, relatando os amores e fatalidades de um grupo de artistas parisienses.

Os artistas marginais, depois de estragarem os sonhos paternos, sofrem privações.

Nas águas furtadas que habitam em comum, O pintor Marcelo e o seu amigo Rodolfo, que abandonara os negócios de família para se dedicar à poesia, decidem queimar a mobília e sacrificar alguns pergaminhos para se aquecerem na noite de Natal.

 

Musetta, a noiva, aqui de tacões altos e ar de striper tem a consciência dividida e parece anunciar uma recusa ao burguês barrigudo.

O implacável senhorio que nem na santa noite esqueceu as dívidas, acaba por se aquecer, ao lado dos artistas mas sem tirar a cartola da cabeça.

 

Na cena central, Mimi, a tísica costureirinha, deixa-se seduzir por Rodolfo.



 

Che gelida manina!
Se la lasci riscaldar…
Mi chiamano Mimi
ed il perché non so
Sola mi fo…
Vivo sola, soletta
Nella mia cameretta


O amor predador vai tendo ecos na tela…

A violência e humilhação andam a par da tragédia da frágil Mimi

Um homem amarelo lembra o “macaco a quem a mulher cortou o rabo” de outras histórias da pintora.

Em escala muito reduzida, uma miríade de figuras vagueia por entre os corpos dos personagens da cena central de sedução.
Paris da vida boémia transforma-se neste mural de “banda desenhada” de traço rápido e firme.

As figuras arrastam-se umas às outras, como ondas de repercussão de um mundo às avessas.
Um homem é puxado por um cão; uma mulher leva pela trela um cão/gato que lhe resiste; outra passeia um porco nas mesmas condições.
Um passaroco autoritário ameaça uma sevilhana (Cármen?) com uma pistola, perante a indiferença de um cavalo que se entrega à leitura.

É dia de festa. A banda sai à rua comandado pelo toque dos tambores.

Ecco il tamburo maggior
La ritirata e qua!

A banda passa e o drama adensa-se.
Mimi julga-se amada por Rodolfo, depois do poeta lhe ter oferecido uma touca cor-de-rosa, mas Rodolfo afasta-se ao saber que ela está doente…

Mimi tem ciúmes e agarra-se a Rodolfo, suplicando que não a deixe. No lado direito da tela Rodolfo, transformado em gato tigrado, vira-lhe a cara e recua.

Io t’amo io t’amo, io sono tutta, tua!
Ci lasciereme alla stagion dei fior!

 

 

Na banda lateral assistimos ao ataque de tosse de Mimi que lhe anuncia a tuberculose fatal.

Nos frisos inferiores a marginalia imita o tom do drama central.
Uma cena da vida doméstica e agradável à refeição descamba numa intriga entre uma centopeia e outro bicharoco, enquanto os castores (da revista Castor onde escrevia Rodolfo) vão escavando túneis.

Um homem parece ter caído nas profundezas da tela; por cima desta banda negra de humilhações, desenrola-se uma estranha cena de negócio que envolve o editor da revista dos artistas. O Tio Sam discute com o castor, apoiando-se num homem nu que se dobra, fazendo de mesa.


Afastamos-nos da tela e as imagens alteram-se, misturando-se num carrossel de leituras sem chave e sem desfechos.

Como disse Paula Rego, «estes bichos não têm culpa. Eu limito-me a mostrar o que acontece, não sei o que se passa depois, isso é lá com eles e com os pais. A moral não é para mim…».

Mimi ………………………………… Maria Callas
Rodolfo ……………………………… Giuseppe di Stefano
Marcello …………………………….. Rolando Panerai
Schaunard ……………………………. Manuel Sapatafora
Colline ……………………………… Nicola Zaccaria
Alcindoro ……………………………. Carlo Badioli

Orchestra e Coro del Teatro alla Scala, Milano
Direcção.. Antonino Votto
EMI, 1998.

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