Hans Holbein, Os Embaixadores, 1533

Momento da Reforma. “Crise” na arte. Tardogótico em confronto com o Renascimento. Choque entre estilos. Assimilação própria do humanismo no Norte da Europa.

Holbein, no seguimento de Durer, Grunwalt ou Lucas Cranach, faz a ponte com o maneirismo

Hans Holbein o Jovem (1497-1543) nasce em Augsburgo, filho de pintor. Vai para a Suiça onde se especializa no trabalho de gravura e em retratos.
Em 1523 trabalha na corte de Francisco I e em 1525 parte para Inglaterra, tornando-se pintor da corte de Henrique VIII. Foi recomendado para o cargo por Thomas More e Erasmo de Roterdão.
Acompanha o movimento reformista de liga luterana que se opunha a Carlos V e aliados. A França apoiava o a liga contra o Imperador.
Henrique VIII rompe com Roma. Em 1527 decorre a guerra de Henrique VIII e Francisco I de França contra Carlos V. O Papa apoia-a.
Em 1527 Carlos V torna-se Imperador. Henrique VIII divorcia-se para casar com Ana Bolena e em 1532 Thomas More demite-se. No Ano seguinte dá-se o casamento de Henrique VIII com Ana Bolena e em 35 Thomas More virá a ser executado.

Na cena política temos Carlos V a avançar o Império aos Países Baixos e Castela e para o Sul nas colónias de Aragão, Nápoles, Sicília. Francisco I aliou-se a protestantes da Alemanha, perdendo o Império para Carlos V. Henrique VIII aliou-se a Carlos V até 1527 e depois torna-se aliado da França. O Papa Clemente VII ( Giulio de Medicis, um Florentino) torna-se aliado de Francisco I contra Carlos V, acabando por se reconciliar. Não aceitou o divórcio de Henrique VIII, desencadeando o cisma da Igreja de Inglaterra.

O quadro.

O quadro estava inicialmente no castelo de Polissy que pertencia a Jean de Dinteville-o embaixador da esquerda. Foi vendido em 1653, comprado posteriormente em 1787 e vendido à National Galery de Londres em 1890, local onde ainda se encontra.

Holbein retrata com um realismo de lupa todos os pormenores da composição,dissecando o rela na proporção directa do mistério que com ele tece.

No centro estão duas personagens, dois embaixadores franceses: Jean de Dinteville, senhor de Polissy (1504-1565) e Georges de Selve (1509-1542), bispo de Lavour.
O pavimento do local onde se encontram reproduz o mosaico da abadia de Westminster, executado em 1268, no tempo de Henrique III.
Os objectos que rodeiam os embaixadores são preciosíssimos para o sentido da composição.
Ao alto, um globo terrestre, instrumentos astronómicos, livros e um relógio solar. Em baixo, um globo terrestre, um esquadro, um compasso, um alaúde e dois livros. Um deles a Aritmética dos Mercadores de Petrus Apianus (1527).


Do lado do bispo, um erudito amador da Reforma que falava eloquentemente o Alemão, o Gerangbeiclein de Johann Walter, publicado em Wittenberg, no ano de 1524, aberto no coral de Lutero.

No canto superior esquerdo vê-se um crucifixo de prata, suspenso da parede, mas semi-encoberto pela cortina.

Os objectos têm um valor simbólico: o quadrivium das artes liberais- composto pela aritmética, geometria, astronomia e música.

No chão, de lado, a anamorfose de uma caveira. Pode decifrar-se olhando lateralmente do lado esquerdo da tela.
Os embaixadores apresentam-se solenemente compenetrados da sua missão e do seu saber.
A terra, o céu, o aparelho para medir o mundo, Cristo, a caveira enigmática funcionam como números ou letras desenhadas de uma maneira precisa, dando-nos uma realidade tão densa que atinge o irreal. “A exactidão de cada contorno, de cada reflexo e de cada sombra está para lá dos meios materiais. A pintura é, tida ela concebida como um tromp-l’oeil.
Alguns dos objectos são por si só temas de perspectiva, usualmente descritos nos tratados .
A astronomia – a perspectiva do céu – e a perspectiva propriamente dita estão
associadas. A exposição dos objectos alegóricos funciona como uma natureza-morta, no meio dos embaixadores, como uma mesa de materiais de um manual para artistas.

O tratamento do crânio apresenta-se como uma aplicação de processos anamórficos. A pintura é um autêntico estudo sistemático e demonstrativo da perspectiva, sob todas as suas formas e uma alegoria das ciências e das artes

Esta tipologia da natureza morta já se podia ter observado no estúdio de Frederico de Montefeltro, em trabalho de marqueterie, executado em Gubbio por volta de 1480.
Temos aqui o tema da”união da artes e das ciências”. Nele se procede a uma relação entre a geometria, o espaço,a música, e o tempo. Uma associação entre a harmonia dos astros e a harmonia dos sons conforme as teorias neo-pitagóricas e neo-platónicas tão em voga no humanismo italiano
Demonstra-se como todas as artes e todas as ciências derivam de um mesmo fundamento do mundo. Estão sustentadas pela harmonia universal e completam-se. Não se trata de glorificar estes conhecimentos, antes de dar uma imagem da vaidade.
O tema da Vanitate mundi aparece inicialmente nas escolas do Norte da Europa
No princípio representava-se somente um crânio e uma parede rachada , como o fez Rogier vau der Weiden no reverso do triplico de Braque, por volta de 1450, ou Grossart pintando um crânio com uma filactera no reverso do díptico de Carandelet

A iconografia faz recordar a inconstância dos bens. Estas composições inserem-se geralmente no interior de um nicho e são tratadas em trompe-1’oiel como nas naturezas mortas científicas do Sul da Europa.
Prendem-se com memórias helenísticas como a do crânio e da roda da eternidade, pintada num mosaico pompeano. São presenças físicas do signo da Morte.
No Renascimento convergem nestas iconografias as obsessões nórdicas medievais do “Triunfo da Morte” e o tema fixa-se na Itália. Podemos observá-las, para além do já referido estúdio de Frederico Montefeltro, nas marqueteries de Fra Vincenzo delia Vache, dito Vincent de Verona que por volta de 1520-23 as executou para o duomo de San Benedetto Novelle.
Nelas predomina o mesmo sentido da negação- emblemas astronómicos, musicais: uma esfera celeste, um sextante, um livro de astrologia aberto num horóscopo,um alaúde, um violão e papel de música. Duas velas acrescentam o sentido da brevidade da sua luz. O alaúde tem uma corda partida, e no quadro de Holbein a sobra rojecta-se em sentido contrário – a harmonia quebrou-se.
No segundo painel de San Benedetto, temos uma cruz papal, uma mitra instrumentos de liturgia, um livro, um crânio e m vaso com uma planta simbolizando a fuga do tempo, no sentido do que dizem os Salmos ( Ps 103 ):” Homem, os teus dias são como a erva”; ou no Livro de Job (cap. XIV): “O homem como a flor nasce e logo é cortado”.

– A Vaidade das Ciências Humanas corresponde a Vaidade dos Poderes Terrenos -.
Trata-se mais uma vez do tema da renúncia. A quebra do orgulho toma-se expressão de humildade.

Temos as mesmas alegorias do quadro de Holbein, os dois registos do céu e da terra como os que se apresentam nos anuários ou nos cadeirais.
O tema da dupla vaidade: de um lado a vaidade cientifica – com a corda solta ou a sombra invertida Do outro a vaidade dos poderes terrenos, representados em Holbein pelos dois embaixadores: o poder laico- Jean de Dinteville, o poder eclesiástico- Georges de Selve.

O crânio entre eles inscreve um terceiro registo, de nível subterrâneo. Em toda a composição perpassa um silêncio das naturezas -mortas e dos seus emblemas.
As Artes e as Ciências apresentam-se sob o signo da Morte. Tudo é pó e ilusão. O crucifixo por entre a cortina relembra que só existe o poder divino que tudo conhece e domina.

O “Gabinete da verdade está fechado mesmo aos santos e aos sábios” como disse Agrippa na “Declamação acerca da incerteza, vaidade e abuso das Ciências e das Artes”, só a palavra de Deus o pode desvendar. Perante as vaidades humanas contrapõe-se, no exacto ponto da revelação da anamorfose da Morte, a verdade de Deus.

A cortina encerra esse gabinete ou santuário de Westmisnter, tal como na Idade Média se abria à revelação de uma visão sagrada.
Por detrás estariam os túmulos de nove soberanos da Grã Bretanha.0 crânio faria pendent a esses corpos embalsamados anunciando a sua inevitável transitoriedade.

A morte designa a luz da salvação que sob a forma do crucifixo balança por detrás dos embaixadores.

Omar Calabrese apresenta uma análise do ponto de vista da semiótica, dividindo-a em nove estádios.

Com base na anamorfose e no jogo de ilusão e revelação que à volta dela Holbein construiu, começa por traçar a seguinte oposição no quadro da verosimilhança: Um plano da verdade, dividido entre o ser e o parecer, e um plano da falsidade,dividido entre o não parecer e o não ser.Unindo-os, temos o quadro como um segredo, ou o quadro como um engano,chegando-se à seguinte aporia: “se acreditamos na representação estamos fatalmente condenados ao engano”, se não acreditamos na representação estamos fatalmente condenados ao segredo”.

O primeiro estádio é o do Segredo. Nele se desenvolve a teatralização a que o quadro estaria destinado. Num primeiro acto o visitante entra pela porta principal de acesso à antecâmara do palácio de Polissy, onde o quadro estava exposto. Dando conta da solenidade da cena e do intenso realismo da figuração, fica no entanto perturbado pelo estranho objecto que de súbito vê aos pés das personagens. Avança e o carácter quase físico da visão aumenta, mas o mistério permanece indecifrável.

Segundo acto: Desconcertado o visitante passa a porta lateral direita, a única que estaria aberta e quando está para entrar na sala vizinha lança uma última olhadela lateral.
Aí compreende tudo: agora pode ver uma caveira no meio dos dois hieráticos personagens e todo o aparato científico da cena se desvanece. “Em seu lugar nasce do nada o signo desse mesmo nada”- o crânio anamórfico.

No segundo nível temos A Identificação das Personagens, com todos os atributos que os citam em paralelo.

O terceiro é o estádio da Cultura. A alegoria da harmonia quebrada na união entre as Artes e as Ciências.Toda uma arquitectura do saber moderno e do espírito da Reforma Cientifica e da Reforma Religiosa que aí se insinua em segredo com meticulosa precisão. Uma isotopia da Cultura e uma isotopia da Cultura científica.

A amizade é o título do quarto estádio. O quadro é também um retraio de grupo.
Presentes e insinuados, estamos perante um círculo de amigos: os embaixadores, Tomás Moro, Erasmo, e o próprio Holbein.

O estádio seguint – o da Política .Aí se dá a ler a missão secreta de que estariam incumbidos os dois embaixadores: Uma missão do Estado Francês e do Vaticano junto do Estado Inglês.

No sexto estádio temos o nível da Pintura.Todo o conjunto de objectos que fazem parte da natureza-morta científica. Nele se estabelece a relação entre o trompe- l’oeil e a anamorfose, na combinação entre a caveira e o alaúde com a sombra invertida.

O nível sétimo é o do Jogo Linguístico. Nele se traça um paralelo entre o jogo da pintura e o jogo da visão. A dupla anamorfose do crânio com uma outra caveira escondida dentro da primeira. Uma mise en abisme meta-textual, mostrando que a pintura jogada é por sua vez jogável. Concluindo que a pintura será sempre e por natureza engano, mesmo quando se quer apresentar como desengano.

Oitavo estádio: A Autobiografia. O jogo de palavras com o próprio emblema do pintor: “Hol- bein”= “osso encavado”. Lema escolhido pelo artista para seu nome. Uma autobiografia sob o signo da morte. Autêntica obsessão ao longo da vida e seguindo a tradição tedesca da vanitas.A morte como segredo.

Nono estádio: A Filosofia. A explanação da “ideia de morte como verdade que ultrapassa a aparência e o engano da pintura e se institui como nível final de leitura.
Decomposta em três traços:
1° – “a isotopia da caveira e da caveira na caveira, mostrando como no inacabado da anamorfose se insinua a dúvida sobre a verdade da palavra e da expressão”.
2° traço – O alaúde com a corda partida restituindo ao silêncio uma harmonia universal.
3° traço- A cortina fechada- sinal da existência de uma “máquina da pintura”, funcionando na câmara escura. E a inevitabilidade do seu recolhimento e dissimulação.

A representação não poderá nunca abrir aquela cortina, porque o outro lado é o lado do irrepresentável. Último golpe de cena onde o crucifixo semi-oculto se oferece como “simulacro da impossível representação de Deus, ponte e passagem para o outro lado darepresentação”.
Mas aqui chegados voltamos à aporia inicial: “se acreditamos na representação estamos fatalmente condenados ao engano, se não acreditamos na representação estamos fatalmente condenados ao segredo”.
“A verdade e a falsidade não existem nesta dimensão. Estão noutro lado. Para lá da cortina que cobre o horizonte, para lá da nossa própria possibilidade de ver e de saber” .

Como disse Agrippa «o caminho da verdade é impenetrável, coberto de muitos mistérios e fechado mesmo aos santos e aos sábios».

bib:
Juguis Baltrusaitis, Anamorphoses: ou thaumaturgus des formes, Paris, Flammarion, 1983.
Omar Calabrese, Como Se Lê Uma Obra de Arte, Edições 70, 1997.

Consultar também: Arquivo Holbein

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